As
previsões meteorológicas nos dias que antecediam a prova não eram nada boas.
Uma semana antes já se falava em frio e chuva. Mas chegando na Europa 5 dias
antes, num calor de mais de 30 graus em Turim (que fica pertinho de Chamonix,
no maximo 200 km), tinha esperança que eles fossem tão ruins nessa arte de
adivinhar o tempo como são os brasileiros.
Mas não
são. E previsão do tempo é quase uma obsessão pra quem vive nos Alpes, percebi.
Em Chamonix a previsão do período fica afixada na vitrine das farmácias, nas
recepções dos hotéis e no meu celular, bombardeado por SMS da organização da
prova, cada vez mais sombrios "TDS, CCC, UTMB Attention! Weather forecast: rain, snow at 2000m, wind, cold. Temperatures dropping below -5 C. Have winter clothing"
Cheguei na
quarta e visitando o salão de expositores já tomei minha primeira lição. Sim,
se eles falaram que ia chover à tarde, acredite! Cheguei no hotel todo ensopado. Pelo menos
serviu de aquecimento pro que vinha em sequência. No dia
seguinte fui pegar o kit e mais chuva. A retirada foi bem demorada, com filas
grandes por um bom motivo: o check-list dos equipamentos obrigatórios. No final
das contas acabaram não sendo tão rigorosos. Ainda bem porque ficar tomando
chuva na fila tava complicado. Fora essa complicação meteorológica tudo me
pareceu extremamente organizado. Impressionante, por exemplo, o sistema Live Trail, que
twitava e facebookeava automaticamente a cada posto de passagem vencido durante a prova. Depois
pude perceber que o negócio funcionou direitinho.
Eu fui
designado pro busão das 7:15, que nos levaria a Courmayeur, na Itália, onde largaríamos.
Aliás, impressionante também o esquema de ônibus, ligando não só a largada e a
chegada, como tambén outros postos chave da corrida, como La Fouly, Champex,
Trient, Vallorcines, e isso sem contar os outros postos que faziam parte da
UTMB classica, como Les Contamines, St. Gervais... e os ônibus ficaram
circulando o tempo inteiro, do começo do TDS, na quinta, até o final da UTMB,
no domingo! Cobrindo três países!! O negócio é gigantesco! Ah, o mais
impressionante é que não estava restrito aos atletas. Ao contrário, os atletas,
em princípio, só os usariam para deslocamentos pré e pós prova e,
eventualmente, no abandono. A utilização maciça foi pros acompanhantes, que
ganhavam um passe para o livre deslocamento.
Choveu
forte a noite inteira em Chamonix, mas amanheceu sem chuva, embora com o céu
carregadíssimo. Em Courmayeur, no entanto, o clima parecia maus aberto. Durou
meia hora minha alegria. Logo começou a chover. Uma chuvinha fraca, mas que
parecia ser duradoura. Mas a coisa tava pior nas montanhas. Tão pior que
cortaram duas montanhas do percurso. A primeira, Tete de la tronche, era um
desnível assustador, 1400m de subida em uns 7km. Com o corte, iríamos direto ao
Refugio Bertoni e a primeira subida era só de 900m em 6km. Não melhorou tanto
assim...
Courmayeur com sol |
Courmayeur e eu cobertos... |
Gilberto e Sibilla Antoniazzi. Infelizmente também não deu pra eles. |
Como convém
a toda boa prova com grande número de participantes (1800 inscritos), largada
em ondas. Com meus resultados modestos, saí na última, 20 minutos depois do
início oficial. O problema é que os cortes durante a prova eram por tempo
bruto, então já saí 20 minutos mais perto de espirrar fora.
Eu nem
consigo imaginar como seria subir o Tete de la Tronche. Subir até o Bertone já
foi um absurdo. A subida, além de forte,
não acaba nunca! Tava com 3 camadas de roupa por causa da previsão do tempo e passei
calor no começo. E não fui o único, tava engraçado ver, já no primeiro
quilômetro, um monte de gente parando e desvestindo calça e jaqueta. Na subida
ao Bertoni, quase todo o percurso foi no mato, então só tivemos noção do frio
quando efetivamente chegamos lá, um descampado onde ventava mais forte, sem a
proteção das árvores.
Apesar das
ondas de largada, teve muita fila nas trilhas. Senti mais isso na travessia do Bertoni pro
Bonatti. Toda no alto, não tinha grandes desníveis e aproveitei pra correr. Mas
toda hora aparecia um tranca-trilha na frente. Pior, ali começou a nevar. E não
dava pra ficar muito bonzinho porque com as mudanças, o primeiro corte em
Arnuva, próxima parada, ficou apertado.
Do Bonatti
a Arnuva, uma descida de uns 250m de desnível. Quando deu, corri. E cheguei a
20 minutos do corte. Uffs. De Arnuva iríamos subir ao Grande Col Ferret. Essa
foi a maior montanha mantida e prometia ser dura: 800m de subida em 5km.
O negócio
foi feio. Não liguei pros tranca-trilhas até porque não tava muito melhor. E ir
num ritmi ligeiramente inferior ao possível me preservaria. A partir de 2000m
de altitude nevava. E a neve apertava, tudo branco, exceto a trilha. Perto do
topo, uma neblina pesada. Mas o pior foi lá em cima. Sem a proteção da própria
montanha - afinal estávamos no topo - a nevasca tava forte. Eu não enxergava
nada, não sabia pra onde ir, um vento forte, a neve despencando, neblina,
frio... saí desesperado de lá, instinto de sobrevivência puro!
Desci uns 2
quilômetros até conseguir pensar novamente. A neve ainda caía forte e o vento
continuava, mas a situação deixara de ser desesperadora. A trilha tava boa pra
correr, era larga e não escorregava. Mas quando baixamos o suficiente pra
deixar de nevar e passar a cair chuva, as condições do terreno se deterioraram.
Tomei dois tombos sensacionais, um deles daqueles em você vê suas próprias
pernas passando pela cabeça.
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Descendo... |
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... e caindo. |
Já bem
perto de La Fouly, uma parada rápida num bar fechado, com uma fonte onde
reabasteci de água. A surpresa foi encontrar umas cervejas na água gelada. O
português com quem conversava não teve dúvida. Simplesmente pegou uma, abriu e
bebeu... se estava lá, era pra isso, ó pá!
Eu já não
lembrava dos novos tempos de corte e temia estar fora. Cheguei em La Fouly por
volta de 17h30 e achava que tinha ficado no corte das 16h45. No entanto, meu
francês é que merecia ser cortado, entendera errado quando anunciaram os novos cortes e ainda
estava bem na prova: o corte era 18h45, tinha aberto uma boa gordura. E falando em
gordura, fiz uma parada mais longa pra comer decentemente. Tinha muita fome.
Comi salame, pão, sopa, bolacha e parti pra mais uma subida. A de Champex era,
teoricamente, a mais fácil.
Na prática,
no entanto, me detonei lá. Me senti muito cansado na subida, não tão íngreme
como as outras (Lembrava a Trilha do Pai Zé, do Jaraguá, só que bem mais
longa), mas com a chuva castigando. Comecei a ser eu o próprio tranca-trilha
dos outros, mas deixava rapidinho o pessoal passar. A cada recolhida era uma
descansada. Mesmo assum cheguei morto em Champex. 20h30, tinha 3 horas pra
chegar em Bovine e tava a ponto de desistir.
Resolvi
comer antes, pra ver se clareava as idéias. E lá encontrei o Décio da D-Run de
Campinas, fazendo apoio para alguns atletas dele, depois de ter ele próprio
feito a TDS. Quando os outros brasileiros partiram, ele me deu uma bela ajuda
com as luvas, pegou isotônico e me deu apoio moral. Isso, mais o macarrão que
comi, renovaram-me. Ia tentar chegar a Bovine!
Mnham... |
A noite já
tinha caído e a chuva apertara lá fora. Liguei a headlamp, saí e quase voltei
ali mesmo. Friiio. Estava com as roupas todas molhadas e o que tava seco deixou
de estar. Com a parada o corpo tava frio e eu mal conseguia coordenar os
movimentos de andar. Pra piorar, como troquei o boné pela touca (não dava pra
usar o headlamp com o boné porque a aba bloqueava o facho de luz), tinha
perdido a única proteção contra a chuva para os óculos. Ainda bem que a saída pra
Bovine foi cruzando a cidade e tinha uns malucos torcendo, acabei continuando e
com o movimento o corpo deu uma esquentada e parou de congelar.
Posso dizer
até que durante uns 4 km a corrida foi ótina pra mim. Não sentia frio, chuva
não incomodava, tava num estado alfa. Mesmo quando começou a subida, tava bem.
O problema é que subimos muito e a chuva virou neve lá em cima. Pior, com o
córregos e lamaçal que encontramos no caminho, os meus pés, até então secos,
ficaram completamente enxarcados. Paramos de subir e agora estávamos numa
trilha a 2000m com neve, lama e um vento doído. Mas achava que estava perto
porque escutava um sino, que o pessoal ficava tocando pra incentivar.
O problema
é que eu não via nenhuma base naquela escuridão. E o sino lá, blem-blem... até
que passamos o sino. Olhei pro lado e a lanterna iluminou... a vaca! Era uma
porcaria de uma vaca! Era Bovine, mas não a bovine que queria...
Não é a "minha" vaca, mas vale a lmbrança... |
Demorou mais meia hora e mais vacas até chegar de fato a Bovine. Basicamente um barracão no meio do nada, gelado, lotado de corredores, vários bem mal. Comi uma barra de Honey Stinger, não dava pra ficar disputando um prato de sopinha. Caí fora de lá, antes que congelasse ficando parado.
Na saída do barracão, um susto. Quase bati de frente com uma vaca, que já estava enfiando a cara dentro do refúgio, pela porta de saída. A descida foi cruel. Não parava de nevar, tava sozinho naquela trilha escura e o chão mais liso que quiabo. Quando não era isso era lamaçal, com o pé até o tornozelo naquele barro gelado. Mas quando começou a descida propriamente dita piorou pra mim. A aderência era melhor nas pedras (embora um eventual escorregão fosse muito mais danoso), mas os quadríceps doíam demais a cada degrau de pedea descido. Percebi que estava lento, os outros competidores me ultrapassavam e abriam. Bateu o cansaço mental e comecei a ficar preocupado comigo mesmo, porque não tava enxergando nada, mas demorei uns 20 minutos pra perceber o ridículo da situação: tava difícil de enxergar porque a pilha da lanterna tava acabando... nada errado com meus olhos, portanto. Mas a cabeça...
Cheguei a
Trient absolutamente morto, caminhando com dificuldade. E torcendo pra não encontrar o Décio, porque sabia que ele
ia me convencer a continuar. Só faltava um morro, Catogne, mas a altimetria
dele era tão ou mais dura que a de Bovine. Mas quando entrei no acampamento e
vi aquele treco lotado de gente caindo aos pedaços, uma disputa enorme pra
conseguir qualquer comida ou bebida, desisti. Com dor no coração, perguntei
onde abandonava. Andei ainda mais uns 200m até o posto de abandono, quase
desisti de abandonar, mas quando dei meu número pro cara registrar, senti um
alívio monstro.
No busão pra
Chamonix fiquei imóvel. Qualquer movimento doía. E quando desci, comecei a
tremer incontrolavelmente, já que sair do quentinho do ônibus pro ar gelado da
cidade, sob chuva e com as roupas molhadas, foi um choque. A caminhada de 500m
até o hotel foi longa, até porque errei o caminho. E também porque às 3h00 da
manhã tinha gente na rua, esperando os corredores chegarem e fazer festa. E
isso embaixo de chuva!
Banheira com água quente, relax, baixa a adrenalina...dormi tranquilo. Duro foi no dia seguinte, acordar e acompanhar a cidade inteira parada nas ruas, aplaudindo os finishers da Ultra Trail. Dor no coração. Até porque, depois da dormida, nem tava tão quebrado assim... aplaudi fervorosamente cada um daqueles caras que chegavam, em especial o Sidnei Togumi, a quem acompanhei nos dois últimos km. Eles mereciam muito o meu respeito. Afinal, onde desisti, eles continuaram até o final.
Sidnei Togumi |
A chegada |
7 comentários:
Grande Nishi
É incrível como a natureza se impõe perante nós simples mortais.
Por isso que o trail run é legal!
Parabéns!
Harry
Grande batalha, Nishi. Algumas a gente ganha, outras engrossam a casca pras próximas. Bola pra frente, que tem muitas outras boas encrencas pra você encarar.
Abraço!
Adorei o relato e as fotos. Desistir e' duuuuuro, mas acredito no famoso o-q-nao-mata-fortalece :-) Vai tentar de novo? Ou vai partir para outras montanhas? bjbj
Nat - Corredora Zen :-)
Nat, dúvida cruel...
Velho, depois de ler isso tudo, tive ânimo para o longão de amanhã (montanha!!).
MGuima - Blu/SC
Obrigado por suas palavras sr. Nish. Agora quero fazer essa merda!!! Rsss
O relato é tão bom que praticamente me senti lá!!! Você fala da cabeça não estar boa, mas foi ela que te fez tomar uma decisão sensata de se preservar naquelas condições... Pra mim, o cara que topa se inscrever na CCC já é raçudo pra cacete! Você é um grande guerreiro, honorável Nishi san!!!
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