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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Half Misión Serra Fina 2013

Quem já ouviu falar da prova La Misión, na Argentina, sabe que é uma das provas mais difíceis que existem no mundo. São 160 km subindo e descendo as "pequenas" montanhas dos Andes patagônicos, um desafio para muito poucos. Para ter ideia da dificuldade, gosto de contar a história do Leal, um dos melhores corredores amadores que conheço, maratona em 3h04, e um dos brasileiros pioneiros do Cruce de los Andes, onde invariavelmente chega no top 30. Um cara casca-grossa, rápido, conhecedor de montanha e que por várias vezes tentou e não conseguiu completar o La Misión. A mais emblemática foi quando sua bota congelou e ele teve que urinar nela para conseguir calçá-la de volta...

Mas tem um outro brasileiro que eu conheço, casca ainda mais grossa, diversos Ironmans no currículo e que já completou o La Misión 3 vezes. Eu o conheci quando ele completou a Mont Blanc (a original,  mais longa, e não o CCC) e por conta de sua fama ele conseguiu trazer o La Misión para o Brasil. O Sidnei Togumi é um cara de outro mundo, neste ano fez o PTL da Mont Blanc, prova de 300 km, com desnível acumulado de 24.000m para ser completada em 136 horas!

Se é esse o cara que vai trazer uma das corridas mais difíceis do mundo para o Brasil, coisa tranquila não vem, certo? Mesmo que sejam versões mais curtas, de 80 e 40km (Half e Short), era lógico que iria vir pedreira. Eu só não imaginava quanto...

A Serra Fina talvez seja um dos poucos lugares do Brasil onde dá pra fazer o que ele planejava: ascenções e declives longos, íngremes e intermináveis. A cidade de Passa Quatro, no sul de MG fica a 900m de altitude. A Pedra da Mina, ali perto, tem quase 2.800m, uma ascenção de 1.900 metros. Nada mal, hein? A definição do site extremos.com.br é bem animadora: "Uma trilha complicada, em um dos lugares mais inacessíveis da Mantiqueira. A Pedra da Mina integra o maciço da Serra Fina, que guarda em seus caminhos intrincados uma das travessias mais difíceis do Brasil"

Como no comercial das facas Ginsu, "e não é só isso!" Não era "só" subir e descer uma vez. Haveria uma segunda subida na parte final da prova. Não, não tinha o desnível de 1.900, era só 1.400m... aiaiai!!


A prova teria o limite de 24 horas para os 80km. Menos de 4km/h de média... dá, não dá? Não é possível que não dê! Bom, dias antes da prova, o organizador informa que devido à tecnicidade do terreno, por conta das chuvas, esse limite foi ampliado para 26 horas... quase 3km/h. Não é possível que não dê!

Infelizmente, como bem registrado neste blog, a preparação foi complicada. Torci o pé esquerdo duas vezes na Travessia de Charlevoix, torci o pé direito treinando na Cantareira, tive um estiramento muscular na bunda e o meu tendão de aquiles não me dava trégua. Mesmo assim, o corpo estava bem. Talvez não tão bem como em outras ocasiões, mas bem, com boa capacidade aeróbica, me sentindo forte, embora com dores.

Chegamos em Passa Quatro com uma baita expectativa. O Orlandini tava tinindo, fez praticamente todos os treinos pesados. Além disso, o pessoal dos 40 km tava com o astral lá em cima. Fredão, Cassiano, Edith e Dalvinha, só corredores experientes, fortes, com boa história de corrida.



O clima estava bom, não estava quente como no dia anterior, mas com muitas nuvens. Risco de chuva que felizmente não se confirmou.

Na largada, logo que comecei a correr, senti um problema. Os pés estavam apertados e doíam, talvez fossem as faixas que passei para dar um suporte aos tornozelos. Nesse início corrido da prova eu não desenvolvia, sentia muitas dores, tava chato demais. A subida até o Refúgio Serra Fina, 12 km adiante, era um dos poucos trechos não-tecnicos da prova, uma estrada de terra, com algumas partes um pouco ruins, pedregosas, mas bem longe de ser um desafio. Só que além do pé doer, cada pisadinha torta era um choque nos tornozelos.

No Refúgio perdi algum tempo tirando as faixas. Segui só com as tornozeleiras. O pé direito melhorou, mas o esquerdo continuou doendo, embora menos. Dali se iniciava a íngreme subida ao Capim Amarelo. Cruzamos um riozinho, onde encontrei o Zumzum, velho companheiro dos 80km de Campinas e começamos a subir uma trilha bem íngreme. Bastões a postos e força nas pernas. Subimos, subimos, subimos até começar a chegar no topo da montanha. Mas era o topo da primeira montanha, bem longe do Capim Amarelo. Dali a gente passou a seguir a crista da montanha, descampado, bem alto e com um visual lindo. Dali vinham algumas das melhores imagens da Serra Fina, assim chamada por ter um caminho bastante estreito nessa crista.

Os minions!!!


À medida em que chegávamos ao Capim Amarelo, aparecia o famoso capim elefante, um capinzal de mais de 2 metros de altura que cobre tudo e transforma aquilo num inferno verde. Isso era revezado por trechos de subida muito íngreme e rochosa.




Chegamos ao Capim Amarelo, a 2.400m, depois de 5 horas de prova. Realmente a visão era deslumbrante, mas o esforço foi bem grande. O pé esquerdo e os tornozelos continuavam ruins, mas tava indo. Ali em cima havia uma divisão: o pessoal dos 40km, de vermelho, desceriam à esquerda e retornariam pelo Tijuco Preto para o Refúgio e depois para a cidade. Nós, dos 80km, seguiríamos até a Pedra da Mina.



Pensei em desistir. Mas uma argentina maluca, empolgada, a Paulinha convenceu toda a patota de amarelo que tava em dúvida lá em cima. Seguimos a partir daí num grupo de 6: eu, Zumzum, Homero, Ricardo, Coutinho (que tinha passado mal e seguia do jeito que dava) e a própria Paulinha.

Eu imaginava que do Capim Amarelo até a Pedra da Mina, um desnível de 400m, teríamos algumas subidas, mas que seria menos difícil do que tinha sido até ali. Engano brutal. Atravessamos 3 valezinhos e montanhas, subindo e descendo e, embora não houvesse aquela metragem toda acumulada, as subidas e descidas eram muito íngremes, com terreno muito difícil, às vezes com capim-elefante, às vezes com pedras, às vezes tudo isso misturado.

Eu e Coutinho, um mais morto que o outro...



Escurecia e começava a fazer frio. Fizemos uma parada técnica para vestir mais roupas e preparar os headlamps. E à medida que escurecia e chegávamos perto da Pedra da Mina, pior ficava. O terreno ia ficando cada vez mais agressivo, com paredões de pedra para contornar ou mesmo subir, na marra. Vários trechos tinham cordas, dada a dificuldade.

Perreeeeengueee...
Chegamos à Pedra da Mina só às 10h15 da noite. Em um grupo de seis, íamos mais lentos do que o normal, porque sempre havia quem ficasse um pouco para trás e nos reagrupávamos na primeira dificuldade, ultrapassada em conjunto. Uma opção consciente, mas com esse efeito colateral.

No cume, um vento geladíssimo, frio, sensação térmica inferior a 0ºC. Apelidada carinhosamente de "La puta pedra" por nossa portenha, paramos ali para assinar o livro e descansar um pouco. O argentino que controlava o posto nos informou, para nossa (in)felicidade, que esse Half Misión era muito mais difícil que qualquer outra etapa do La Misión, inclusive o original...


O Ricardo, que vinha bem e liderando o grupo o tempo inteiro, se sentiu meio mal, com dor de cabeça e sono extremo. Mas um pouco de carboidrato e analgésico seguraram a situação. O Coutinho estava melhor, após um tônico que o Homero lhe deu. Este, por sua vez, tava com a lente de contato comprometendo tudo e trocou por óculos. Zumzum, naquele momento, já tinha disparado na frente. Eu e o Coutinho saímos rápido do cume por causa do frio e descemos um pouco até o vento amainar, onde aguardamos o resto do pessoal.

Se acháramos a subida ruim, a descida foi pior. Porque descer paredões de pedra nua é muito pior e mais perigoso do que subir, ainda mais naquela escuridão. Mesmo com a sinalização perfeita, mesmo com headlamps potentes, a noite e a escuridão tiveram um efeito bastante desmoralizante. Insegurança, desamparo, sobrevivência!

A partir de um determinado momento na descida, eu e o Homero começamos a nos desgarrar do Ricardo, Paulinha e Coutinho. Avançávamos, esperávamos um pouco e seguíamos, abrindo vantagem rapidamente, mesmo naquele ritmo lentíssimo de descida. Minhas coxas doíam demais e os tornozelos há muito não me davam nenhuma firmeza. O Homero caiu e machucou o joelho, mas conseguiu seguir. A sede começou a pegar, mas por sorte minha água nunca acabou, sempre tive uma reservinha.


O pior era encontrar os controles no meio daquele vazio e eles informarem que só faltavam 40 minutos até o riacho, até a água, até o Paiolinho. Porque NUNCA era 40 minutos, sempre passava uma hora, uma hora e meia... me sentia um pato nessas horas, 40 minutos de que jeito? Voando? De asa-delta?

A sensação de perigo constante, os escorregões, as coxas ardendo de tanto segurar o corpo nas descidas, o culopatín (descer de bunda), tudo isso somado à madrugada tornaram essa descida da Pedra da Mina até o Paiolinho a pior parte da prova para mim. Para percorrer esses 08km, eu e o Homero levamos quase 7 horas!! O Garmin pifou, e o tal do Paiolinho nunca chegava!!

Chegamos lá com 16h50 de prova (3h50 da manhã), 35km de prova, 2km/h de média? Apesar do cansaço, estava bem organicamente e bem de cabeça. Mas era óbvio que quem tinha feito metade da prova em 16h50 não faria a outra metade em 09h10! Mesmo que do Paiolinho até o Ibama fosse uma estrada de terra em descida e em boas condições, eu não conseguiria tirar essa desvantagem. Desisti. O Homero também ia desistir, mas encontrou uma outra argentina maluca que queria seguir de qualquer jeito e foi com ela.

Nesse posto já estavam o Marcelo (que eu encontrara na loja da Salomon em São Paulo, retirando a camiseta) e o Caio, descansando depois de desistirem também. Os três desistentes, sem a menor dor na consciência... Paulinha e Ricardo chegaram um pouco mais tarde, mas o Coutinho ainda tentou mais um pouco. Infelizmente, mas previsivelmente, nem ele, nem o Homero foram muito longe e também desistiram um pouco mais pra frente.

O resgate demorou porque eles esperavam a chegada ao Paiolinho dos outros corredores atrás da gente. As últimas chegaram às 08h00 da manhã e queriam continuar, uma delas era uma Misionera do La Misión original de 160km. Ela argumentava: "Se eu fiz 160km vou parar aqui com 40?" Pois é...

Mas a história não acaba aqui. A minha sim, mas ainda deu tempo de voltar pra cidade, tomar um banho, ir para a chegada e acompanhar a chegada emocionante e sensacional do Orlandini, com 24h15m de prova. Ele veio com a Rita, ambos se ajudando no final da prova, uma marca do La Misión. Os corredores se agrupam e se unem durante a prova para enfrentar as dificuldades.


Nos 40km, a Dalva voou, fez uma prova brilhante e ganhou na categoria dela, em menos de 7 horas. A Edith e o Cassiano chegaram na casa das 07 horas e o Fred fechou com 08h40. Todos inteiros, dentro do possível.

Valeu a pena? Bom, foi uma experiência única. Mais difícil que o Misión original, dizem (prova que eu nunca tive coragem de fazer). Mais difícil que o CCC. Mais difícil técnica* do que qualquer outra prova brasileira direta, sem etapas. Quem disso isso não sou eu, mas muitos outros veteranos de provas difíceis, gente cascuda mesmo! E o fato de não ter completado não importa tanto, já que não fui o único. Segundo o site, só 77 terminaram. Esse número está errado porque o Orlandini figura como non-finisher, o que não é verdade (é só ver a foto), e deve ser corrigido em breve. De qualquer forma, 78 entre 132, um índice altíssimo de desistências! Caras como o Mauro Chasilew e Walter Rinaldi estão do meu lado, nos DNF. A coisa foi feia! E o visual, lindo!! E, de qualquer maneira, eu conquistei mais um cume, o da Pedra da Mina.


Obs: algumas dessas imagens foram captadas no Facebook, de amigos, de amigos de amigos, enfim, várias fontes. Difícil dar o crédito a todos porque já esqueci de onde tirei. Mas acho que todos concordam que as imagens, por mais lindas que sejam, não chegam nem aos pés do visual que se tem do próprio local.



* atualização: "mais difícil" foi um termo usado no calor do momento pós-prova. "Mais técnica" talvez seja melhor, porque a BR-135 (217km)  e a Ultra dos Anjos (235km) são extremamente difíceis pela distância, embora sejam percorridas em estradas de terra, portanto em condições menos técnicas. E tem a Jungle Marathon, 200km em 7 etapas, que oferece monstruosa dificuldade pelas condições climáticas da selva amazônica, pelo terreno de floresta, com lama, areia, travessia de rio, raízes etc, além do desafio de fauna e flora (cobra, onça, escorpião, formiga...)

6 comentários:

Ricardo Mizumoto disse...

Caramba Xará, isso aí é coisa pra doido...Tá loco, não consigo nem imaginar como seria correr por 24-26hs...rsrsrs Ninguem cochila, faz uma pausa? Ri com a descrição do Capim Elefante, inferno verde...kkkkkkk Po, pena não ter terminado mas como o pessoal disse mais casca que o La Mission original, o CCC, etc... fora o numero de desistências. Força aí, relax e bora pra próxima!! Abs

Ricardo Nishizaki disse...

Hehe, sabe que a Paulinha, a argentina empolgada, dormiu 5 minutos, meio de pé, encostada num dos paredões? Pois é...

marcelo ishikawa disse...

Eu fiz a prova de 40 km e fiquei com a sensação de "quero mais",quem sabe um dia não me arrisco nos 80km.
Prova inesquecível.

Marcelo Hideki disse...

Eu participei da prova dos 40 km e fiquei com vontade de fazer os 80km,quem sabe em 2014...

Prova inesquecível.

Ésio Cursino disse...

Ricardo, estou indo este ano para a Half Mission. A prova da algum apoio ou temos que levar comida e bebida, a mochila deve ter quantos litros ou só uma garrafa de 750 ml e suficiente, que tipo de tênis e adequado.

Ricardo Nishizaki disse...

Ésio, o espírito do la Misión/Half/Short é autossuficiência total!! Ou seja, leve toda a comida que precisar, não há postos de apoio, apenas postos de controle da prova, onde eventualmente existe água. A Serra Fina é conhecida também por ser um lugar muito ermo e com poucos cursos d'água disponíveis, então é bom ter muita capacidade para carregar água, inclusive porque a prova é muuito lenta. Eu sou um cara que bebe pouca água e levei 2,5L e, mesmo assim, a água chegou a acabar (não me preocupei porque estava perto de um ponto de água, mas...). Quando fiz estava seco, então não tinha problema com lama, mas se chover pode ter alguma complicação com isso. De qualquer forma, os trechos mais complicados são os rochosos, então o tênis tem que ter um bom agarre nesse tipo de terreno. E, por fim, muita roupa, vai estar muuuuito frio lá em cima, venta demais e a sensação térmica certamente será negativa.